Daiane dos Santos escreveu seu nome na ginástica. A gaúcha foi campeã mundial em 2003 e ainda tem dois movimentos que levam o seu nome: o duplo twist carpado, ou Dos Santos I, e a evolução desse primeiro: o duplo twist esticado, ou Dos Santos II.
Em entrevista para a revista Marie Claire, a ex-ginasta revelou que já foi vítima de racismo e que tinha atleta na seleção que não queria usar o mesmo banheiro que ela.
“Acho que não existe uma pessoa preta que não tenha sofrido racismo na vida. O que acontece é que muitas pessoas não entendem o que estão passando, não sabem diagnosticar. No meu caso, sempre foi tudo muito sutil: um olhar diferente, um tratamento diferente. Uma levantada de voz. Várias situações que a gente consegue entender que é sempre a mesma cor que sofre. As vezes é pessoal mesmo, com a Daiane, a pessoa pode não gostar de mim. Mas a gente sabe quando é preconceito racial. E é aí que entra a estrutura familiar, de ter alguém ali te dizendo para ficar, para aguentar, porque vai passar e vai dar certo. Comigo, houve situações na seleção, nos clubes, de pessoas que não queriam ficar perto, que não queriam usar o mesmo banheiro! Aquele tipo de coisa que nos faz pensar: opa, voltamos à segregação. Banheiros para brancos e banheiros para pessoas de cor. Teve muito isso dentro da seleção”, contou.
“E além da questão da raça, tem a questão de vir do sul, de não ser do centro do país, de ter origem humilde. Ou seja: ela é tudo o que a gente não queria aqui! E aí é óbvio que precisa de uma rede de apoio para te manter estruturada, para aguentar firme. Eu fingia que não ouvia, porque eu sabia que eu não precisava daquelas pessoas para chegar onde eu queria chegar. Quem eu precisava já estava do meu lado. Eu sei que isso parece muito seco, muito duro, e até muito fácil. Mas eu sempre tive isso dentro de mim, é da minha personalidade, vou muito pelo o que eu quero, sou muito teimosa. Teimosa e com a confiança de ter tido uma educação muito consciente em casa”, completou.
Daiane foi a primeira ginasta brasileira, tanto entre mulheres como homens, a ganhar medalha em Mundial. Além disso, ela também foi pioneira entre as atletas negras da modalidade.
“Quando a gente vê uma pessoa preta em um lugar, ela representa todas as pessoas pretas. Mostra que é um lugar possível. E ainda mais em esportes que não são os que as pessoas estão acostumadas a ver uma pele escura. E a repercussão foi mundial, porque eu não fui a primeira negra brasileira, fui a primeira ginasta negra do mundo a ganhar uma medalha de ouro. A Dominique Dawes, uma outra ginasta negra, em quem eu me inspirei muito, foi medalhista mundial, terceiro lugar no solo. Até porque na época, a gente não tinha tantas negras competindo. Em Atenas, na seleção brasileira eram duas, eu e a Ana Paula. Mas em Pequim eu era a única da minha equipe. Mas o que eu sinto é que depois da medalha, eu vi uma entrada muito grande de meninas negras no esporte. Quando eu entrei na ginástica tinham outras meninas negras, no meu clube mesmo, no União, em Porto Alegre, tinham outras. Mas na competição de elite, tinham muito poucas. Mesmo nas outras seleções da Europa, dos Estados Unidos. Muitas competições eu fui e era a única negra. Na minha época, eu sabia desse papel. Sempre foi muito claro na minha cabeça isso, meu pais sempre trabalharam isso em mim. No Sul, a criança preta é muito empoderada, é uma questão de sobrevivência. Dizem que lá é apenas 14% de pessoas negras. Eu acho que é mais…. Mas a questão do exemplo foi sempre uma coisa muito forte na minha família. A minha irmã mais velha ser exemplo para mim, eu ser exemplo para a minha irmã mais nova… Não é uma coisa pensada, planejada, era natural. Mas eu vi essa mudança”, argumenta.
“A presença de uma menina negra dá mais confiança para outras que virão. É muito importante que isso aconteça, que venham outros meninos e meninas negras, que estejam em locais que sejam os únicos, ou os primeiros. E que os outros entendam que aquele lugar também é deles. Que não é a cor da pele que vai restringir. O que tentam fazer é nos oprimir. Fazer com que a gente se sinta tão mal a ponto de a gente não se sentir pertencente e nem merecedor daquele lugar. E aí vai muito do trabalho da família. Hoje isso é ainda mais claro para mim, a importância não só da presença, mas da fala. De a gente realmente mostrar pros jovens e para as famílias negras que a gente tem esse potencial. Muitas vezes o bloqueio vem da família, dos anos de opressão que viveram”, explicou.
Na opinião de Daiane já é possível ver a transformação: “E o resultado disso é que dentro da seleção de ginástica artística hoje, a maioria é negra. A Seleção oficial da ginástica feminina, a maioria é negra. Então tem muito de pensar: se a Daiane está aqui, se ela chegou, eu também posso. E essa corrente do bem, de motivação, que vá adiante, que a gente mostre para as pessoas, não só para os atletas, que somos merecedores. Meu pai sempre me disse que era um dever meu, como cidadã, mostrar a realidade do povo negro, a minha realidade como mulher negra, que eu me gosto, me cuido, amo a minha cor, não tenho vergonha nem da cor e nem da condição social. E isso ficou ecoando muito em mim. Ter orgulho da tua etnia é uma coisa natural. E essa é uma troca para todos, uma conversa para negros e para brancos. Só quando a sociedade toda entender isso é que as pessoas vão se sentir livres para se aceitar”.
*Crédito da foto: Reprodução/Instagram/Daiane dos Santos
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